
23.06.2025
Na sessão dessa semana, fui surpreendida por uma pergunta aparentemente inofensiva — daquelas que a gente talvez tenha escutado quando criança, mas que, ao reaparecer na fase adulta, desarma.
Se você fosse um animal, qual seria?
Fiquei em silêncio. Provavelmente já me fizeram essa pergunta antes. Mas, honestamente? Não faço ideia do que respondi — se é que respondi.
Aliás, começar a sessão já virou um pequeno ritual de hesitação. Sempre chego sem saber por onde começar. Às vezes, nem sei se queria mesmo estar ali naquele momento. Mas basta cinco minutos para o caldeirão ferver: pensamentos soltos, frases truncadas, ideias desconexas — tudo querendo existir ao mesmo tempo.
E então, como num passe de mágica (ou de técnica clínica, rs), Ana vai colocando cada pedaço no lugar.
Até que a pergunta veio.
Fiz um esforço para buscar alguma memória da infância. Nada. Nunca sonhei em ser um tigre destemido ou um pássaro livre. Tampouco uma formiga trabalhadora.
Na verdade, meu sonho infantil era bem mais prático: fazer 18 anos, tirar a carteira de motorista e cair na estrada. Sozinha.
Quantas vezes imaginei essa cena: a música alta, o vento bagunçando o cabelo e a estrada inteira só pra mim. Sem mapa, sem hora, sem ninguém me esperando do outro lado. Apenas eu e o mundo, numa espécie de pacto silencioso de liberdade e autonomia.
(Acho que Ana vai querer explorar isso depois… rs.)
Mas voltemos ao presente. Aos cinquenta. Que é um ótimo número, aliás. Cinquenta dá tempo de amadurecer os desejos — ou de trocar alguns por versões mais confortáveis.
Nada de viver sozinha, mas também nada de bando. Um par estaria de bom tamanho.
Comecei a descrever o que desejo hoje. E percebi que, se fosse um animal, escolheria um da terra. Talvez até voasse, mas por preferência, manteria as patas bem firmes no chão.
Um animal atento, silencioso, astuto. Que soubesse o momento exato de agir.
Um ser que transmitisse carisma e empatia, mas deixasse claro: não confunda gentileza com ingenuidade. E, claro, inteligente. Culto. (Tô pedindo muito?)
Foi então que ela apareceu. A coruja. Surgiu do nada — ou do tudo que habita o inconsciente, como diria Jung — e se instalou nos meus pensamentos.
Do outro lado da tela, vi o sorriso de Ana. Aquele sorriso de quem já sabia.
Ela me convidou a modelar a imagem. Como já contei por aqui, minha análise é atravessada pela arteterapia. Toda sessão é selada com um material, uma técnica, um símbolo.
Dessa vez, escolhi massa de EVA. Uma surpresa boa: leve, limpa, macia e fácil de moldar. As cores se misturavam suavemente, criando nuances, se adaptando como quem aprende a existir em outros tons.
Enquanto moldava, não era só uma figura que tomava forma — era uma história.
Modelei uma coruja fêmea. Com um parceiro e dois filhotes. Tinham construído um ninho num buraco de terra vermelha, ao lado de um ipê amarelo, protegido por uma grama alta. Um esconderijo perfeito para quem busca segurança, mas não invisibilidade.
Só que essa coruja não era apenas esposa, mãe ou dona de casa. Ela era uma intelectual. Uma viajante dos pensamentos. Voava por onde quisesse, mas ao fim do dia, escolhia pousar no mesmo ninho: um lugar de pertencimento, de silêncio bom, de reconhecimento — e, por que não, de retorno a si mesma.
Uma observadora da vida ao redor. Atenta. Justa. Perspicaz. E segura de quem é.
Deixei a coruja secando na prateleira de livros, bem acima da minha mesa de estudos, ao lado de uma plaquinha com o nome “Daniela Demartini”, que imita a sinalização de Brasília. Um lugar ideal para ela descansar — e me observar.
A sessão terminou.
E com ela, mais uma certeza: a arteterapia é, sim, uma das ferramentas mais potentes que já conheci. Simples, delicada, mas profundamente transformadora. Capaz de iluminar sombras que nem sabíamos que estavam ali.
Terminei a noite grata.
À Ana.
À arteterapia.
E, claro, à coruja que mora em mim.