
28.04.2025
A proposta da sessão era construir, com cola, papel, fios de lã e coragem, a minha linha da vida dos 0 aos 10 anos. Um recorte quase ingênuo da infância, se infância fosse simples.
Comecei pelo começo.
Nasci em Catanduva, no dia 18 de dezembro de 1974, com um mapa astral que eu ainda não entendia, mas que já desenhava em mim um certo impulso por liberdade, uma inquietação precoce e uma habilidade sutil de existir entre mundos, o de dentro e o de fora.
Em 76, veio minha primeira irmã, e em 1978, a segunda. De filha única à irmã mais velha em dois atos.
Passamos a ser três: três filhas, três irmãs, três meninas com a mesma criação, mas com personalidades, desejos e silêncios absolutamente distintos.
O que não se dizia entre nós era absorvido nos gestos, nos olhares, nas pequenas disputas de espaço, de colo, de afeto, de identidade, mas entre uma cumplicidade de sangue, que só irmãs conhecem.
Logo entendi que o colo havia se tornado item de coleção: raro, disputado e, no meu caso, rapidamente arquivado.
Com um ano e quatro meses, fui promovida à função de quem já não era “o bebê”. Com três, já circulava pela casa como a pequena responsável, o que, em termos práticos, significava ser a dona do próprio nariz e da própria aventura.
E como aventura é o sobrenome de qualquer sagitariana, certa vez, fugi de casa. Simples assim.
Peguei um lanche, arrumei em pequena bolsa rosa, atravessei a cidade (ou ao menos uns bons quarteirões), e fui levar comida para o meu pai no trabalho.
Um gesto entre o heroico e o absolutamente assustador, principalmente para os adultos que perceberam o sumiço depois que ele já tinha acontecido.
Eu, por outro lado, estava convicta. Autônoma. E, como diriam hoje, perigosamente confiante.
Esse episódio entrou direto para a colagem da minha linha da vida. Não tinha como ser ignorado: era a metáfora perfeita da minha infância.
A urgência de cuidar dos outros, o impulso de resolver as coisas sozinha, e aquele tipo de coragem que nasce antes da consciência do perigo. Um combo que parece romântico aos olhos dos outros, mas que, para quem vive, costuma ser só… exaustivo.
Aos seis anos, já em outra cidade, Santo Antônio de Posse, no interior de São Paulo, comecei minha saga pela alfabetização.
Aqui, o tom da linha mudou.
As cores ficaram mais opacas.
A lembrança da escola vem turva, com a sensação de esforço excessivo e reconhecimento escasso. Letras que não se encaixavam. Palavras que dançavam fora do lugar. E uma criança que já se cobrava mais do que sabia dizer.
Precisei de reforço para aprender a ler e fui alfabetizada duas vezes. Eu achava que isso confirmava o que diziam em casa e nas entrelinhas dos olhares dos colegas: eu não era boa o suficiente.
Não eram tempos fáceis. Mas, à sua maneira, foram fundadores.
É engraçado olhar para trás agora. Se você me dissesse que, um dia, eu olharia para aquelas memórias de infância com ternura e até com um pouco de humor, eu provavelmente reviraria os olhos, estilo adolescente contrariada.
Mas aqui estou eu, transformando minhas desventuras e confusões em histórias para dividir com vocês.
Na minha memória, a infância tem cheiro de terra molhada depois das chuvas rápidas de verão e o som de risadas ecoando pelas ruas de uma cidade tão pequena que a palavra “Google Maps” seria um conceito inútil.
Corríamos descalços, sentindo o chão quente e áspero sob os pés, como se o mundo inteiro fosse nosso playground particular. Durante essas corridas, eu era livre. Esquecia, por algumas horas, que a liberdade lá fora contrastava com os muros invisíveis da minha casa.
Dentro de casa era um pouco diferente, as regras eram claras e inquebráveis. Cada copo fora do lugar, cada roupa esquecida sobre a cama, virava quase um evento nacional. “Desorganizada.” “Distraída.”
Essas palavras eram ditas com tanta frequência que se tornaram um eco constante.
O fim dessa década foi marcado por mais uma mudança, na realidade, duas mudanças.
Aos 10 anos, nos mudamos para o Rio de Janeiro — mais especificamente, para um condomínio de classe alta na Barra da Tijuca. E eu nem preciso dizer o que isso significou para uma menina que até então vivia entre brincadeiras de rua, pés descalços e a simplicidade quase ritualística do interior paulista.
Foi um choque de mundos.
De repente, o que antes era suficiente passou a parecer “pouco”. O jeito de falar, as roupas, o ritmo das conversas — tudo carregava um código que eu ainda não conhecia, mas que entendi rapidamente: ser simples ali não era exatamente um trunfo.
O corpo, aliás, parece ter sentido tudo antes da mente.
Foi nessa época que menstruei pela primeira vez — cedo demais para os padrões da época, mas talvez no tempo exato em que minha infância resolveu pedir demissão.
Uma espécie de rito de passagem não anunciado, mas profundamente sentido.
O corpo gritou o que a alma ainda sussurrava: algo aqui mudou para sempre.
Na arteterapia, a gente aprende que a linha da vida não é uma linha reta.
É uma espiral, uma rede, um caminho cheio de atalhos e pedras que insistimos em guardar como troféus.
E construir essa primeira década com as mãos — recortando, colando, desenhando — me trouxe uma estranha ternura por essa versão pequena de mim: tão destemida quanto solitária, tão criativa quanto exigida.
Ao final da sessão, olhei para a cartolina como quem reencontra uma velha amiga que, por alguma razão, foi esquecida num canto da memória.
E senti uma vontade enorme de pegá-la no colo — coisa que, convenhamos, ela merecia desde 1976.